quarta-feira, 6 de outubro de 2010

TIMBUKTU - de Paul Auster



    Não é muito fácil entender os animais, principalmente para alguns “bípedes pensantes”. De certo, há de se perceber que os ditos “domésticos” possuem uma curiosa “evolução” no que se diz respeito à compreensão de língua falada do animal racional equivocadamente chamado “homem”.
   Sendo um dos “lideres” deste respectivo nível, o cão por sua vez, fiel quadrúpede mamífero, consegue com mais facilidade assumir alguns aspectos personalíticos de seu dono, ou dona, ou da família, e até quem sabe do mundo... Do mundo? Bem, se pensarmos que a representação de “mundo” pode estar implícita naquele lindo cãozinho que todo dia come as migalhas de pão de sua mesa, podemos encerrar esta reflexão dizendo que sim.
   Levando-se em conta esta afirmação façamos, por outro lado, a seguinte alusão a respeito de um tema um tanto quanto mórbido: a morte, pois, a cabível semelhança entre estes lindos “bichinhos” de estimação e o ser humano – estendendo-se também para toda forma de vida – seria, nada mais, nada menos, que a própria citada. Esta, como todos nós sabemos, não exclui ninguém, mesmo porque, estamos todos predestinados àquilo que é inexorável, àquilo que é tão certo quanto um mais um são dois, ou seja, todo mundo um dia irá morrer.
   Convicto de que um tema como este seja, ao mesmo tempo, lúgubre e contraditório, levo à luz deste ensaio alguns comentários a respeito do livro “Timbuktu” de Paul Auster, o qual conta a história de um cão a procura do paraíso perdido.
   Esse rumo celestial, esse “Éden canino” tem por nome o referido título da obra citada acima (Timbuktu) que por ser um tanto exótico, infere, por sua vez, um lugar distante, onde, de certa forma, ninguém nunca consegue chegar.
   Entre as características marcantes de Auster neste livro, podemos destacar a narrativa cadenciada e as acrobáticas aventuras desta mixórdia de heranças genéticas, “parte pastor escocês, parte cão de caça labrador, parte spaniel, parte um quebra-cabeça canino” chamada mr. Bones.
   O autor, por meio de uma singeleza textual, apresenta um misto de fábula e romance, delineando um cão metafórico que, junto de seu dono – Willy Gurevitch Natal, poeta, semilouco e alcoólatra – faz uma longa viagem a pé pelos Estados Unidos – de Washington para Baltimore – a procura de uma senhora – Bea Swanson, velha professora de inglês de Willy e fonte de inspiração de seus primeiros escritos – a qual seria a esperança tanto de um quanto de outro em encontrar um novo dono para Bones e, ao mesmo tempo, alguém que pudesse cuidar dos escritos do esquizofrênico Willy – tendo em vista que o mesmo está nas últimas.
   Algumas características estilísticas como, a despretensiosa liberdade estrutural do texto faz com que o envolvimento do leitor para com o enredo acabe sendo inevitável, pois se tratando de um vira-lata (personagem protagonista) capaz de compreender a língua dos homens, mas que somente nos sonhos consegue pronunciar os sons da fala, o livro, por sua vez, conota a constante oposição da vida em uma América hostil, repleta de ameaçadores restaurantes chineses, de furgões que recolhem cães sem donos e, principalmente, de abrigos onde a injeção letal é o ponto de partida a este lugar edênico que abriga todos os desencarnados.
   A respeito do titulo da obra, o livro infere o fim do mundo, em uma espécie de espaço geográfico findado, pois tal lugar inicia-se somente ao término do nosso mapa.
   Em torno desse ponto de vista, percebe-se o escapismo e o sonho do poeta diante da sociedade, a sua incompreensão para com o mundo fazendo-o, através das drogas, uma espécie de “auto-suficiente”, “o senhor de si”, em oposição à própria exclusão que a sociedade oferece.
   Por outro lado, Willy se impõe como um visionário, não permitindo, entretanto, a rotulação mendigo, pois as sarjetas das ruas são para si mesmo um divã constante no qual seu próprio cão se posiciona como analista fiel, tornando-o, automaticamente, uma espécie de ferramenta pensante do texto e principalmente um símbolo de adoração.
   Já em relação às aventuras de mr. Bones conota-se no livro o questionamento socialista diante de uma sociedade capitalista e desumana. Esta que, de certa forma, exclui quem não se enquadra nela.
   Bones é companheiro de um homem incompreendido pela sociedade (assim como tantos outros) o qual tem como guru Papai Noel – símbolo do consumismo manipulador capitalista – que por sua vez desperta em Willy a verdadeira figura do “bom velhinho”. Este até então inexistente no mundo do poeta, só se faz presente através de pregações de bondade. Para Willy aquela figura “não ´´e um embuste, nem algum demônio disfarçado”, mas sim a purificação, um verdadeiro sorriso feliz, em oposição, é claro, ao paradoxo do amor que é a própria destruição.
   É em torno de paradoxos que o livro apresenta sua crítica contra os maus tratos para com os excluídos, pois o espírito meditativo e melancólico de Bones incita a todos a entender o porquê de ter esperanças, mesmo inferindo, nas entrelinhas do texto, que esta é produto da solidão. Auster através de Mr. Bones leva à tona a problemática do “estar sozinho” e principalmente a busca por um lugar melhor.
   A “condição” acaba sendo a companheira implícita de cada personagem, mesmo porque a verossímil situação de um cão em ter o “ingrês” como sua segunda língua, propõe a real possibilidade de entendimento e comunicação com o mundo. Por outro lado, o maldito Willy representa o resultado de vícios gerais adquiridos, fazendo-se vítima sintomática do desinteresse pela vida normal em sociedade. No entanto, a “solidariedade humana” observada pelo cão é uma espécie de doutrina de condenados à morte, e isso denota bem o porquê do companheirismo entre Willy e Mr. Bones, pois sendo o amor privilégio dos que vivem sob risco de vida, a marca da fatalidade de ambos se fez de forma planejada e marginal.
   Timbuktu contesta uma humanidade contraditória por meio de um ser “abandonado” a procura de sua própria sorte, todavia é contundente ao apontar as veredas do destino do “excluído” ao encontro do melhor lugar para si mesmo, isso tudo diante das migalhas de atenção e de farrapos de alegria, as quais são sobras de um contínuo festim de violência.
   Auster é sublime em sua “pintura”, deixando claro no enredo que “ninguém consegue nada nesta vida sem alguém que acredite em nós”.
   Todos estão predestinados a um fim para um bom recomeço. É necessário então divagar a respeito disso. Mr. Bones assim o fez, tanto que “correu rumo ao barulho, rumo à luz, rumo ao esplendor e ao rugido que disparavam contra ele, de todas as direções”.
   Isso tudo por ter a morte como uma aliada e não o suicídio como um instrumento de fuga. A “escatologia canina” estaria, por sua vez consumada se Mr. Bones conseguisse “com um pouco de sorte estar ao lado de Willy antes de o dia acabar”.
   Bones, entretanto, esteve frente a frente com o perigo e com a esperança da real liberdade, mas em função de certos deslocamentos imagéticos a uma esfera de sentimentos puros, o romance infere ao leitor a constante construção de intuitos desiguais e concordantes ao invés de iguais e discordantes.
   Isso basta para um mundo ansioso por uma nova forma de amar, mesmo porque, para se reconstruir o respeito é necessário o mínimo de coerência em relação ao que está trincado, pois só uma consciência em cacos entende um mundo despedaçado... Timbuktu propõe esse exercício, ou seja, perceber o caos para reconstruir novas concepções.
   Auster é categórico ao demonstrar que só trabalhando sobre si mesmo com verdadeira continuidade de propósitos e sentido completo de responsabilidade moral, podemos realmente convertermos em homens. Isso implica consagrar a totalidade de nossa existência ao trabalho sobre nós mesmos, conscientes da cidadania e da cultura inserida em nossas vidas.
  Talvez pensar a respeito disso tudo seja demasiadamente difícil, requer um grande esforço, um padecimento voluntário. É necessário, portanto, ter muita coragem, muita disposição e, principalmente, ser forte pra cachorro.


BIBLIOGRAFIA

AUSTER, Paul. Timbuktu. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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