sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O QUEBRA-CABEÇA

    Saudações, caro leitor. Novamente estou diante de um grande dilema: escrever um ensaio analítico e comparativo sobre duas preciosidades da literatura Inglesa. Como ambos os livros me deixaram “atordoado”, achei pertinente desistir de tal tarefa, e criar um “quebra-cabeça”, para um melhor entendimento do processo de criação das respectivas obras.
    Bem, talvez isso tudo acabe mesmo num ensaio, mas como eu não sou bobo de me comprometer, continuo insistindo nessa “brincadeira”, ou melhor, nesse “quebra-cabeça”.
    O intuito de tal proposta é identificar as características semelhantes em ambas as obras, a fim de um melhor entendimento do estilo dos autores, tendo em vista a época em que foram escritas.
    Para tanto, é pertinente evidenciar que o leitor deve ter uma boa imaginação e também uma boa... Ah! Por falar em imaginação, permita-me ressaltar que o ato de evocar seres, colocando-os em determinada situação está estritamente ligado ao imaginário de uma obra artística. Quer dizer, no mundo imaginário tudo acontece, tudo é possível e o autor pode criar um mundo a seu bel-prazer, libertando-se das amarras sociais em que estamos engendrados. Isso faz com que a vida cotidiana seja diferente, mesmo porque, imaginar é uma atividade paralela à ação que exercemos no dia a dia, ligada à realidade, a uma atividade de reconstrução, de transformação do real, em função de significados que damos aos acontecimentos ou de repercussões interiores que há em nós.
    Bem, já que o assunto é imaginação, vai aí a primeira pista do nosso “quebra-cabeça”: as duas obras trabalham a dialética do imaginário na interação “obra” e “mundo”, podendo ser lidas de diversas formas.
    Claro que é impossível saber quais são essas obras, mesmo porque outros clássicos da literatura também podem apresentar tais características, mas para facilitar a identificação das mesmas chamarei então o primeiro livro de Moderno Prometeu e o segundo de Wunthering... (é preciso afirmar que esses nomes também têm ligações com os títulos originais “em português”).
    Temos assim, em Moderno Prometeu, uma obra que à primeira vista parece denotar a presença de valores românticos típicos do século XIX, os quais refletem idéias revolucionárias e não-convencionais. Contudo, uma leitura mais atenta sugere que tais valores são questionados nos principais acontecimentos do enredo;
    Já em Wuthering... uma paixão arrebatadora e possessiva das protagonistas é visto como algo romântico, porém assustador. Tal paixão acaba sendo o motor de toda a história onde se desenrolam cenas assombrosas e violentas, juntamente com episódios de intrigas e paixões.
    Ainda está difícil imaginar quais são essas obras, não é mesmo? Vamos então a mais uma rodada:
    Em Moderno Prometeu a autora (já se sabe que é uma mulher agora) propõe três narrativas que se interconectam, contadas por homens totalmente destituídos do sentimento de vida familiar, ou seja, homens que negam a experiência social, problematizando o poder na vida burguesa. De certa forma, as três narrativas impõem um desdobramento linear do enredo, iniciando e terminando com uma personagem a qual escreve para sua irmã inglesa, da periferia exterior do mundo civilizado, limite entre o conhecido e o desconhecido;
    Bem, como está muito cedo pra arriscar um palpite, prossigamos então no intuito de descobrir algo sobre o segundo livro.
    Em Wuthering... as protagonistas apresentam características fortes – como o temperamento explosivo e a violência – que acabam interferindo no comportamento das outras personagens da história.
    O livro, por sua vez, vai contra os conceitos da época em que fora escrito (Séc. XIX), e isso porque sua autora (sabe-se também que o autor é uma mulher) desenvolve em sua obra maior uma história de amor excêntrico onde o grande impulso emocional não são virtudes, como a sutileza ou a doçura, e sim, a obsessão pelo outro, o ciúme descontrolado e o excessivo sentimento de posse.
    Todavia, podemos notar que as duas obras simbolizam um protesto contra os costumes e os conceitos da época em que foras lançados (Séc. XIX), ou seja, quando Moderno Prometeu foi escrito em 1818, sua autora tinha apenas 21 anos e, apesar de todos os sustos, este era um livro um tanto quanto sério, começando a perder tal seriedade quando os leitores passaram a perder a inocência. Pode-se entender que esta obra – a qual tem um cunho estritamente gótico – acaba sendo um coquetel das idéias de Rousseau, por meio de Godwin, da mitologia grega e também de preocupações religiosas daquela época. Percebem-se então as implicações metafísicas sobre Deus e o homem, bem como as conotações sociais vigentes em 1818 que, por sua vez, inquiriam se era mesmo pecado original o responsável pelas mazelas humanas, ou se o homem nascia bom e era a sociedade que o corrompia.
    Já em Wuthering... a tensão das personagens se mistura à emoção e a curiosidade, construindo o tempo de forma clara e coesa, permitindo um bom entendimento de seus momentos. As personagens são bem marcantes, com sentimentos levados ao extremo, capazes de enfrentar tudo para defendê-los, apresentando, sobretudo, as características essenciais do Romantismo, que eleva o nível do enredo e o transforma em uma grande obra-prima. Esta obra, no entanto, foi publicada em 1847 sob o pseudônimo de E. Bell, (o verdadeiro nome da autora será revelado somente adiante) e apresenta uma aparente reconstrução da realidade, superpondo as visões fantasmagóricas de um reino imaginário.
    Denota-se aí o aspecto imaginário que fora comentado no início do jogo. Quer dizer: O imaginário presente em tais obras sugere que o mesmo começa onde a realidade se opõe, ou seja, pelo imaginário, voltamos ás fontes de nós mesmos; ao mesmo tempo, evadimo-nos de nós mesmos para buscar nossa amarração no universo, alimentando-nos assim de nossas esperanças ocultas, escondidas há muito, sempre latentes, prontas a germinar ao mínimo chamado. E isso pode ser inferido tanto em Moderno Prometeu como também em Wuthering...
    Ademais, em Wuthering... assim como em Moderno Prometeu, o gótico acaba se fazendo presente (e de forma ainda mais clara) e isso tudo porque a respectiva história sugere uma reflexão profunda sobre a extrema severidade da moral vitoriana típica desse período e dessa sociedade. A ação do romance em Wuthering... acontece no Norte da Inglaterra, no final do Século XVIII, numa região agreste, desolada e assolada por terríveis ventanias, pintando um cenário inóspito no qual cresceu a própria autora e suas irmãs que desde pequenas se aventuraram pela literatura. As paixões explosivas, o amor obsessivo, a irrupção imponderável do mal, bem como as vidas e destinos marcados por surtos encadeados de emoções convulsas, conota a presença do gótico que não se fez apenas como uma opção estética, e sim como um estado latente em expressar a opinião sobre os valores do homem em um mundo fragilizado pela arrogância. E isso tudo porque o resgate dos valores noturnos, os rumores mórbidos no decorrer da obra, o pessimismo, a loucura, os sonhos, as sombras, a decomposição, a queda, a atração pelo abismo, a morte e a urgência pela vida, infere já uma presença de aspectos do Surrealismo dentro do Romantismo além de um estilo Medieval que de certa forma faz o livro parecer um tanto quanto rude e esquisito.
    Acredito, caro leitor, que as informações comentadas até aqui não são suficientes para uma boa identificação das respectivas obras da literatura inglesa. Para tanto, apresentarei as peças essenciais para que este “quebra-cabeça” seja melhor “visualizado”. Estas peças, todavia, se referem ao enredo linear das respectivas obras. Vamos a elas então:
    Em "Moderno Prometeu" a autora apresenta uma visão subjacente: o conflito entre a retórica do livro e os acontecimentos presentes no mesmo. Em seu entusiasmo utópico para ajudar a humanidade, um médico chamado Victor F. se vê como um benfeitor, conduzindo por anos a tarefa em criar a vida, reunindo partes de vários corpos para formar um ser maior que o homem. Nesta atividade, ele se afasta de todo o domínio familiar, ou seja, para gerar uma vida artificial se exila da humanidade, dos confortos da casa, da noiva e sendo incapaz de confessar seus atos, não consegue avisar sua família do perigo que a ronda. Mas logo que o monstro ganha a vida, o jovem médico sente uma revolta moral, uma repulsa, um sentimento que se afirma mais forte à medida que a história continua. E, depois de todos os revezes, morte, e sofrimentos, Victor F. considera que toda esta situação é uma espécie de retribuição pelo seu ato de criação. A criatura, centro da narrativa, por sua vez, está colocada como um marginal na sociedade; sem família, apreende o mundo pelos livros e, enfurecido por comportamentos para ele incompreensíveis, aniquila todos aqueles que possam contribuir, de alguma forma, para com a vida feliz de seu criador;
    Já em Wuthering... a narrativa se apresenta a partir das memórias de uma ex-governanta, que descreve pormenorizadamente a humilhação que um homem chamado Heathcliff passa com seu irmão de criação. Este, no entanto, é levado à casa dos Ernshaw por caridade, mas com o passar do tempo torna-se um homem rico e, em busca de vingança, volta ao lugar onde sofrera as ofensas. Ao mesmo tempo, porém, o rebelde nutre uma grande paixão por Catherine, irmã do homem que deseja matar e que, durante os anos em que esteve ausente da Inglaterra, casou-se com outro homem (que por sinal era nobre). È necessário afirmar que a afeição entre Heathcliff e Catherine se torna aos poucos mais acentuada no decorrer da narrativa e a relação deles passa de amizade de infância à grande amor, porém a grosseria do rapaz acaba sendo uma de suas característica, e o ódio que mantinha sobre tudo e todos acaba transformando-o em um ser diabólico, capaz das maiores atrocidades, até mesmo contra seu próprio filho. A história, enfim, é um tanto quanto nebulosa e intrigante, acentuando seu clima de paixões enlouquecidas, denotando a convivência de duas famílias aparentadas, onde cada qual possui um casal de filhos. Ao longo do romance o leitor vai mergulhando numa série de tragédias amorosas tecidas com pitadas de ódio, preconceito, orgulho, humilhação e mortes.
    O que temos até agora?
    Bem, temos duas obras da literatura inglesa que trabalham a dialética do imaginário se opondo à realidade, muito embora acabem retratando suas convicções além de uma parcial veracidade ao simbolizar um protesto contra os costumes e os conceitos do Século XIX.
    Apresentam também características essenciais do Romantismo, ambientando as personagens em cenários assombrosos, criando conflitos a partir do imaginário, proporcionando certo pessimismo em relação à sociedade vigente da época, retratada no enredo. E isso, todavia, infere o Gótico que é um elemento de grande importância no Romantismo, sugerindo então uma reflexão profunda sobre a extrema severidade moral na sociedade.
    Temos, sobretudo, que o respectivo Moderno Prometeu, (o qual conta a história de um jovem médico criador de um “monstro” que, por sua vez, ansiava enquadrar-se na sociedade) foi escrito em 1818 cuja sua autora o fez com apenas 21 anos de idade.
    Por outro lado, em Wuthering... a autora (uma mulher solitária, filha de um severo pastor, que vivia longe do mundo e que, pelo que se sabe, jamais experimentou o amor) usa o pseudônimo E.Bell ao publicar em 1847 a história de Catherine e Heathcliff, pintando com letras um amor desvairado, além da morte, docilizando a paixão num amor sublime, compatível com a ordem, com a produção, uma vez que é racionalizado pelas regras da conjugalidade burguesa, pouco importando o alto custo para suas vítimas, muito embora o mórbido e o aspecto enigmático se faz companheiro do leitor a todo instante. Este romance é talvez a mais bela, enigmática e mais violenta história de amor da literatura. Nele predomina a paisagem tempestuosa como um eco das emoções turbulentas que dominam as personagens;
    Ora, já sabemos também que quem escreveu ambas as obras foram mulheres, e pra matar de vez a charada vão aí os nomes delas:  Mary Shelley e Emily Brontë:

Mary Shelley - (1797-1851), mulher do poeta Percy Bysshe Shelley, escreveu esta obra para participar de um concurso de histórias de terror realizado no castelo de Lord Byron. Mesmo competindo com grandes gênios da literatura universal, acabou redigindo esta que é uma das mais impressionantes histórias de horror de todos os tempos;

Emily Brontë - (1818-1848) A mais talentosa das irmãs Brontë, Emily só teve o seu mérito reconhecido muitos anos após a sua morte. Seus pais eram luteranos pobres, porém cultos. Tendo perdido a mãe aos dois anos, foi criada por uma tia, juntamente com um irmão e mais quatro irmãs, duas das quais precocemente falecidas. Quando faleceu, Emily tinha apenas trinta anos de idade.

    É salutar observar uma curiosidade: O ano em que Shelley escreve seu livro (1818) é o mesmo em que Brontë vem a nascer;
    Tem alguma dúvida em relação às obras? Vamos então a mais uma pista:
    Ambas as obras além de serem clássicos da literatura, acabaram também imortalizados no cinema através de várias adaptações!

Vamos aos resultados:

    Se na primeira obra você disse Frankenstein, você acertou. E o nome usado até agora Moderno Prometeu, também faz parte do título completo da obra: Frankenstein ou o moderno Prometeu, denotando aí a presença da mitologia grega no contexto da mesma: o fogo que Prometeu roubou de Zeus para levar aos homens também é um dos motivos subjacentes em Frankenstein. (E só pra completar: o nome do médico é Victor Frankenstein). Para explicar melhor o parêntese: Frankenstein, para quase todos nós, representa mais o nome do monstro do que o de seu criador, pois tanto o leitor comum quanto o habitual frequentador de cinema se uniram, em sua aparente confusão, para criarem um mito fortemente fundado numa dualidade existente na novela de Shelley. E isso tudo em função da obra proporcionar várias interpretações as quais são sempre atuais.
    Enfim, percebe-se que no fundo a obra mostra que há apenas uma maneira diferente de contestar a fábula do pecado original, e de insinuar que não há nada como uma boa sociedade injusta para estragar um produto perfeito na origem, ou seja, o homem.
    Já em Wuthering... é necessário entendermos que este nome vem do título original em inglês Wunthering Heights que tem várias traduções, mas que em português acabou se firmando como O Morro dos Ventos Uivantes. Segundo Charlotte Brontë (irmã da escritora):

“O Morro dos Ventos Uivantes é todo ele rústico, selvagem e espinhoso como uma raiz de urze. Nem seria natural que fosse de outra maneira, uma vez que a autora era nascida e criada nas charnecas. Sem dúvida, houvesse ela nascido numa cidade, e os seus escritos teriam possuído outras características (...). A sua imaginação, mais sombria do que otimista, mais poderosa do que esportiva, encontrou nesses traços o material com que criou personagens como Heathcliff, Earnshaw e Catherine”.

    Acho que não preciso dizer mais nada, não é mesmo? Contudo, acredito que a montagem desse “quebra-cabeça” foi um tanto quanto sucinta, mesmo porque se pegarmos para falar sobre ambas as obras seria um “quebra-cabeça” de no mínimo umas três mil peças... Desculpe-me, acho que isso é conversa de alguém que ainda não conseguiu digerir a essência dos livros e que passou a escrever como um lunático em busca de respostas as quais ele mesmo não sabe. Esse alguém sou eu, caro leitor, contudo, atesto de forma convicta que a literatura pode ser um alucinógeno, pois só um doido, como eu, é capaz de tentar montar um “quebra-cabeça” a fim de um melhor entendimento das obras que, de certa forma, não merecem comentários, mas sim aplausos.

Um comentário:

  1. Erico,

    Quando leio um livro, se vejo o filme do mesmo fico frustrada (ou o contrário)? Tudo se deve a tal da imaginação.

    Estes livros que você citou no quebra-cabeça eu nunca li. Bom “jogo”.

    Obrigada por estar no Braille da alma.

    Sigo-te!

    Grande abraço.

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