terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Ensaio Literário - Hilda Hilst



HILDA HILST 
1930 - 2004



Onde nasceste, morte?
Que cores, ocaso e monte?
E os pulsos que te arrancaram
Do mais escuro.   De carne?
Te alimentavas

De amêndoas negras?   Havia águas?
Vagidos,  choros,
Empelicada como nasce a vida?
Se querias, tocavas?
E sendo criança
Não tocavas em tudo
E o instante se fazia
Insipidez e nada?

E velhíssima agora
Conhecendo todos os tatos
Agonia, terror e pasmo

Saciada

Por que não partes.






A POETA E SUA OBRA


Poeta, ficcionista e dramaturga – tríplice conjugação de forças criadoras que raramente germinam em um só espírito, Hilda Almeida Prado Hilst é uma das personalidades literárias mais completas e instigantes do Brasil. Nasceu em Jaú, São Paulo, aos 21 de Abril de 1930. Em 1948, entrou para a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco), formando-se em 1952. Em 1966, mudou-se para a Casa do Sol, uma chácara próxima a Campinas (SP), onde lá faleceu  em 2002. Hilda Hilst dedicou todo seu tempo à criação literária, tendo sido agraciada com os mais importantes prêmios literários do país. Participou, desde 1982, do Programa do Artista Residente, da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP e seu arquivo pessoal foi comprado pelo Centro de Documentação Alexandre Eulálio, Instituto de Estudos de linguagem, IEL, UNICAMP, em 1995, estando aberto a pesquisadores do mundo inteiro. Alguns de seus textos foram traduzidos para o francês, inglês, italiano e alemão. Em março de 1997, seus textos Com os meus olhos de cão e A obscena senhora D foram publicados pela Ed. Gallimard, tradução de Maryvonne Lapouge, que também traduziu Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.
Nelly Novaes Coelho (1980) destaca que “como toda grande poesia, a de Hilda Hilst expressa em seu suceder as transformações mais decisivas da contemporaneidade, através de uma essência religiosa, que se processa no âmbito das relações Homem/Divindade – tentando redescobrir a condição humana, as forças terrestres e a própria Morte, como elementos essenciais e justificativos da própria Divindade – e também de caráter humano, correspondendo à busca empreendida pela Mulher no encalço de sua própria imagem em busca de um novo lugar no mundo. Ambas radicam em interrogações vitais para o ser humano: sobre o resgate definitivo de sua condição terrestre/mortal, e sobre a urgente recuperação do espaço feminino, hoje em plena metamorfose e desequilíbrio”.
Nelly também afirma que “na poesia de Hilda Hilst, as interrogações radicais estão fundidas diretamente entre o ser humano e a mulher incorporando-se numa terceira entidade, a poeta, que vai assumir a responsabilidade da tarefa nomeadora atribuída à Poesia”. 
O mistério da Poesia e o do Amor foram, desde as primeiras horas, os pólos imantados que atraíram e fecundaram a invenção da palavra em Hilda Hilst.
Acompanhar seu surgimento e seu evoluir, é confirmar o pensamento renovador que, sob múltiplas formas tem atuado, nesse período, no processo da poesia brasileira.
Nelly enfatiza categoricamente que “em Hilda Hilst, a intenção renovadora vai-se ampliando em círculos cada vez mais largos, à medida que ela verticaliza e aprofunda a sondagem de sua palavra. Do interrogar atento e lírico, voltado para os seres e coisas que tocam o eu-poético, seus poemas vão revelando uma progressiva radicalidade na interrogação. Esta se concentra cada vez mais no próprio eu, isto é, no ser que interroga. Há uma diferença essencial entre o primeiro e o último interrogar: a diferença que vai do eu que se vê em distância, como que de fora, procurando se conhecer objetivamente, e a de um eu que se assume por dentro – força ou luz que existe e irrompe fulgurante”.
A temática que permeia e une todas as obras de Hilda Hilst é em grande parte o desejo.  Contudo, o carnal é o caminho para tocar o divino, este cuja busca esteve sempre presente na literatura de Hilda Hilst. Seu lirismo tem como inspiração objetos cotidianos e simples como duas maçãs ao relento ou memórias de dias ensolarados em que o eu lírico encontrava-se apaixonado. A solidão também serve de matéria-prima para seus versos, imbuídos da ausência do ser amado, que neste momento já não pode representar o objeto do desejo, uma vez que ele se configura na busca da paixão em si mesma.
A imagem do louco, definida como a própria sombra da escritora, surge como símbolo da vida, em certo momento desdenhado das inquietações daquela que o observa e que, por sua vez, recebe a denominação hindu de Samsara.
 Em várias entrevistas que concedeu, Hilda Hilst declarou que importante para o homem é estar sempre apaixonado, seja por pessoas ou idéias.
Sobre Hilda Hilst, o poeta Cláudio Willer afirmou: "sempre enfatizei  qualidade de suas imagens poéticas, em obras como Da morte - odes mínimas e Amavisse, e sua condição de escritora herética, gnóstica, moderna". Para o historiador de arte Jorge Coli, a escritora "percebia o mundo sem os moralismos tristes de nosso tempo. A sexualidade que a inspirava nunca se tornava pornografia, mesmo se ela, às vezes, por razões esdrúxulas, quisesse fazer-se pornográfica. É que tudo vinha transformado por uma pulsão interrogativa, orgânica e metafísica".
Já em “Poemas aos Homens de nosso tempo” a poeta se ergue, aos poucos, como uma revolucionária. Fica evidente a oposição  materialidade/essencialidade que percorre toda a seqüência poética de Hilda Hilst onde sua intencionalidade ético/existencial se abre para a política:

                                                homenagem a Alexei Sakarov

                                        de cima do palanque
                                        de cima da alta poltrona estofada
                                        de cima da rampa
                                        olhar de cima.

LÍDERES, o povo
Não é paisagem
Nem mansa geografia
Para a voragem
Do vosso olho.
POVO. POLVO.
UM DIA.

O povo não é o rio
De mínimas águas
Sempre iguais.
Mais fundo, mais além
E por onde navegais
Uma nova canção
De um novo mundo.

E sem sorrir
Vos digo:
O povo não é
Esse pretenso ovo
Que fingis alisar,
Essa superfície
Que jamais castiga
Vossos dedos furtivos.
POVO. POLVO.
LÚCIDA VIGÍLIA.
UM DIA.

Neste poema em específico, Hilda Hilst trata a política de maneira transgressiva, chamando os líderes para que prestem atenção no povo. Alguns líderes tendem a tornar pequenas as questões políticas, questões estas que transformam e movimentam a vida do povo. Quando o eu-lírico chama os governantes, o autor utiliza letras maiúsculas para a palavra “LÍDERES”, significando um recurso gráfico que tanto pode ser os governantes vistos como supremos, bem com o objetivo de chamar a atenção daqueles que estão no poder para ouvir o que o eu-lírico (em nome do povo) tem a dizer.
No início do poema o eu-lírico utiliza um léxico para expressar que o poder político está em outro lugar, em outra realidade, ou seja, é um poder elitizado e acima do povo, vê-se isso através das palavras “palanque”, “poltrona estofada”, “rampa”. Ele observa que de onde os políticos estão, possuem um “olhar de cima” que tende somente um foco e distorcidamente, essas imagens constroem um distanciamento entre líderes e povo.
O eu-lírico observa que o povo “não é paisagem/Nem mansa geografia”, pelo contrário, ele é para se organizar e agir, conforme seus ideais e suas aspirações. O poder não deve manipular e tragar com violência a “voz” do povo. “Para a voragem/ Do vosso olho” a visão de quem está no poder não deve calar, silenciar a transformação no seio da sociedade, porém o “POVO” pode ser “polvo” e se defender como o animal citado, que possui tentáculos e arguta inteligência. Os tentáculos do polvo representam as possibilidades de defesa e mudança de direção, novos caminhos, novas saídas, novas possibilidades e é com essas possibilidades que o eu-lírico espera que o povo tenha seu papel na linha de frente da história, construindo assim, o verdadeiro poder, de baixo para cima.
No poema vemos o recurso da aliteração nos versos: “Para a voragem/ Do vosso olho/ Povo/ Polvo” com o objetivo de explorar um ritmo e fazendo um jogo de palavras até chegar nas palavras “POVO/ POLVO”.
O eu-lírico declara que o povo não é rio de “mínimas águas” por onde o poder navega, mas que, através de uma “nova canção”, “um novo mundo” seja diferente do que se está vivendo por ele. A esperança que o eu-lírico deposita está totalmente centrada no povo, de que ele vai preparar um novo amanhã. O eu-lírico diz “sem sorrir” que “o povo não é/ Esse pretenso ovo”, ele não é fechado e delicado como querem alguns, mas é força, é luta e juntamente com esses elementos advém à mudança. Para isso é necessário que cesse a alienação, pois o poder “finges alisar”, ou seja, manipula com o intuito de manter as coisas como estão, porém para o eu-poético os políticos devem estar preparados para aceitar que o poder deve ser exercido em benefício da maioria.
O poema tem aspiração revolucionária e quem está apontando os equívocos de uma organização política é o eu-lírico, que observa o povo em “LÚCIDA VIGÍLIA”, a espera da mudança “UM DIA”, um tempo que com certeza pra ele irá chegar;
Já em relação à poesia erótica, percebe-se que esta aparece como uma das forças mais importantes nas obras da autora. É na evolução da sexualidade, presente em sua poesia  erótica que vemos o problema da Mulher, tal como se vem colocando em nossos tempos: ela se redescobrindo, essencial, com a responsabilidade de ser princípio, expansão e duração do homem, em plena plenitude sexual. Em um dos poemas, A Cantora Gritante, por exemplo, algumas mulheres resolvem punir uma vizinha por causa de sua voz afinada que, cantando, enternecia os maridos alheios. Os versos finais trazem uma advertência como moral da história: "Se o teu canto é bonito, cuida que não seja um grito".

A Cantora Gritante

Cantava tão bem
Subiam-lhe oitavas
Tantas tão claras
Na garganta alva
Que toda vizinhança
Passou a invejá-la.
(As mulheres, eu digo,
porque os homens maridos
às pampas excitados
de lhe ouvir os trinados,
a cada noite
em suas gordas consortes
enfiavam os bagos).
Curvadas, claudicantes
De xerecas inchadas
Maldizendo a sorte
Resolveram calar
A cantora gritante.
Certa noite... de muita escuridão
De lua negra e chuvas
Amarraram o jumento Fodão a um toco negro.
E pelos gorgomilos
Arrastaram também
A garganta Alva
Pros baixios do bicho.
Petrificado
O jumento Fodão
Eternizou o nabo
Na garganta-tesão... aquela
Que cantava tão bem
Oitavas tantas tão claras
Na garganta alva.


Moral da estória:
Se o teu canto é bonito,
Cuida que não seja um grito.

As análises tradicionais desse poema apontam para uma interpretação mais literal, ou seja, realmente se trataria de uma cantora que, de tão bela voz, atraía os homens causando inveja e raiva às suas mulheres. Porém, a discussão do grupo apontou para muito além dessa visão tradicional:
A “cantora” é muito mais que isso – ela simboliza o renascimento da condição da mulher, agora, distante de um ser passivo e oprimido a que sempre foi relegada – cantora que remete ao ato de cantar, no sentido de flerte, sedução: “A CANTORA GRITANTE” é apenas uma metáfora utilizada pela poeta para trabalhar a hipocrisia, o domínio machista da sociedade e a necessidade de subverter a ordem moral imposta, as regras que só fazem tolher o desejo da mulher.Todo o título está em maiúsculo e isso significa um verdadeiro grito por libertação. A entonação enfática está em cada letra deste título. Gritante por quê? Porque ao final, foi castigada, reprimida, calada.
Quando a poeta cita que “Cantava tão bem / Subiam-lhe oitavas / Tantas tão claras”, remete claramente à idéia de perfeição e, “Na garganta alva”, à pureza. Assim, que mal há em seduzir? Que mal há em se sentir pleno, viver sua sexualidade, ser natural, se libertar dos grilhões da sociedade? A perfeição e a pureza seriam a mulher vivendo sua sexualidade sem tabu – livre, assim como o homem, pois no poema eles estão “às pampas excitados”, não escondem seus excitamentos e se realizam em seus desejos carnais “a cada noite em suas gordas consortes enfiavam os bagos”. Ao contrário das mulheres que, quando resolvem calar a cantora, estão “Curvadas claudicantes / De xerecas inchadas”, é a clara condição do excitamento sexual, porém em atitude de erro, condenável pela moral. Então, maldizem a sorte – a sorte de estarem presas à moralidade imposta pelo sistema e de não terem coragem ou condições para se libertar e serem tão plenas quanto à cantora. E isso tudo porque infringir regras denota punição, um preço que a grande maioria não quer pagar.
Daí a revolta contra àquela que se sentiu no direito de deixar cair o véu do fingimento, da falsa devoção à moral - aquela que transgrediu os “sagrados preceitos” impostos por uma sociedade dominada pelo homem.
A cantora é capturada numa noite, de muita escuridão, de lua negra e chuvas. É um processo gradativo que aumenta, progride a idéia de conspiração, revolta, ódio não só da transgressão da cantora, mas da própria condição de impotência feminina. É muito mais que incomodar, é ferimento, é chaga aberta que precisa ser fechada. A imagem precisa ser preservada e essa sociedade se sentiu atacada nesse que é seu bem mais precioso. Os véus estavam caindo, a sexualidade estava aflorando e isso não poderia ser permitido, pois, quebraria a enraizada estrutura que sustenta o sistema.
Por outro lado, à noite, a lua e as chuvas são elementos dúbios, passíveis de dupla interpretação.
A noite tanto simboliza a morte, as sombras, o mal, o engano e a angústia, elementos que englobam esse contexto de sublevação, como também remete ao começo do dia, o tempo das germinações que irão desabrochar como manifestação de vida. Entrar na noite é voltar ao indeterminado, ao inconsciente, pois é no sono da noite que esse inconsciente se libera e isso tem que ser reprimido. Mas, até quando? O dia virá. É, pois, ao mesmo tempo, trevas e luz. É um triunfo sobre o tempo, onde é possível recomeçar. A poeta passa, assim, a idéia de que há esperança de que o “som”, as “notas” desse “cantar” possam percorrer livremente os “ouvidos” da sociedade, de que os véus das aparências, ignorância e hipocrisia possam, finalmente, ser arrancados.
Assim também podemos analisar a Lua que por si própria simboliza mudança, devido às suas fases e tem correlações diretas com o Sol, sendo apenas o seu reflexo. Esse reflexo é símbolo do conhecimento indireto, discursivo, progressivo, frio. Evoca metaforicamente a beleza e também a luz na imensidade tenebrosa. Mas, como essa luz não é mais que um reflexo, a lua é apenas símbolo do conhecimento por reflexo, isto é, conhecimentos teóricos, conceptuais, racionais. Note que, ela está negra e isso só ocorre quando há eclipse, que é o desaparecimento ou intercepção total ou parcial de um astro pela colocação de outro. No sentido figurativo é o obscurecimento intelectual ou moral. A ignorância, tanto no sentido da falta de conhecimento quanto no sentido de não levar em conta a condição do outro se sobrepondo a ele, é muito bem simbolizada nesta metáfora da Lua negra.
Voltamos, assim, à idéia de a sexualidade feminina estar encoberta pela impostura da sociedade, pois a Lua ilumina o caminho sempre perigoso da imaginação, da magia, da subjetividade, enquanto o Sol, simboliza a estrada real da objetividade. Daí o eclipse. Os reflexos dessa objetividade têm que estar encobertos. No entanto, o eclipse é um estado transitório – ele se desfará e novamente o pensamento, o espírito, a alma voltarão a trilhar os mesmos caminhos do real. A Lua é vista como a esposa do Sol, não há como desvincular o dia da noite. Sempre estará ligada ao grande astro e a tudo que ele simboliza, por isso sempre será símbolo da transformação, do crescimento: É um ciclo, o Sol é a objetividade que simboliza a realidade e se a Lua sempre virá após ele, então esse grito, essa idéia de libertação feminina não é utopia – é tão real quanto, tão possível quanto, pois mesmo após o sol se pôr, seus raios continuarão se refletindo na Lua para que ilumine os caminhos. No caso, os caminhos do próprio homem no sentido de encontrar uma forma de sociedade mais justa.
Veja que a poeta utiliza a palavra consorte para designar aquelas que saciam os maridos da excitação causada pelos trinados da cantora. Consorte não é apenas cônjuge, alguém que partilha de uma vida em comum com outra pessoa – e que no caso de um casamento tradicional, na grande maioria das vezes, o papel da mulher é sempre de submissão e dependência – mas também significa aquela que partilha da mesma sorte: se os homens têm liberdade sexual e elas partilham da mesma sorte, logo a idéia de igualdade de condições está implícita. A mulher pode não somente ser a cônjuge, mas, a consorte dentro dessa instituição ou fora dela, pois a lua não ilumina apenas um caminho.
As chuvas e suas águas também estão ligadas a este simbolismo de transformação e à fecundidade. A água tanto destrói quanto faz brotar, renascer. A chuva limpa, lava, varre tudo o que for “sujeira” e “entulho” para longe, dando nova vida á velha paisagem. A água é fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerência, mas, junto a tudo isso, há sempre a ameaça de reabsorção.O fato de  que a cantora foi apanhada em tais condições (de noite, lua negra e chuvas), representa os conceitos que têm que ser revistos, porém, o sistema criado por aqueles que não permitem que a mulher se liberte em sua sexualidade, abandonando a passividade num mundo dominado pelo elemento masculino, estará sempre à espreita para retomar sua hegemonia.
A cantora é estuprada. Não um estupro físico, pois conforme dito no início, ela é apenas a representação da condição feminina, mas um estupro ideológico. Não é permitido à mulher ser formadora de opinião – a voz feminina tem que ser calada. Mas veja que o estupro se deu com um jumento que pode ser visto como Satã ou como a Besta. Ambos simbolizam o sexo, a libido, o elemento instintivo do homem, uma vida que se desenrola inteiramente no plano terrestre e sensual. Seria o espírito que monta sobre a matéria que lhe deve estar submissa, mas que ás vezes escapa a seu governo. Essa questão do espírito montar sobre a matéria é de muita ironia por parte da autora: punir alguém pela liberdade sexual que teve, com sexo oral e com um animal que simboliza o próprio sexo e a submissão a ele, indica claramente que o sexo está incorporado no homem, é o espírito dele, a alma dele, o homem seria apenas a matéria. Assim como o Sol e a Lua fazem parte do ciclo da vida, o sexo faz parte da natureza do homem. Não há como tolher para sempre esse direito à mulher. Veja que, a “matéria” deve estar submissa, mas, que às vezes escapa ao governo, por isso ela foi calada apenas momentaneamente. Na verdade ela foi eternizada: “O jumento Fodão / Eternizou o nabo na garganta tesão...” Matéria e espírito se encontraram - é exatamente o contrário do que se desejava pelas consortes.
A poeta finaliza com uma moral: “Se o teu canto é bonito, cuida que não seja um grito”. Ela alerta exatamente para a questão apontada no início da análise: infringir regras culmina em punição, ou seja, viva a sua sexualidade, porém, sem se deixar expor, causando confronto com o sistema hipócrita que aspira “moralizar” a sociedade.
Se a obra de Hilda Hilst ficou longe das estantes e ignorada pelo público durante décadas, quem as gerou sempre gozou da atenção da imprensa, e isso tudo em razão da estranheza que causavam suas declarações bem como seu modo de vida.
Na poesia de Hilda Hilst, desde as primeiras horas, se faz presente à valorização da ironia em dualidade com o sexual. Entretanto, o penetrar na essência do “sexual” não se dá de imediato: resulta de um processo de amadurecimento que nos parece muito importante de ser analisado, porque corresponde ao que a Mulher vem vivendo em nossos dias e que, para cada uma em particular, chega em seu devido tempo. Todavia, pode-se dizer que na poesia erótica de Hilda Hilst a Sexualidade se dilui numa tensão, quase religiosa, de anseio por uma fusão radical do eu com o universo, para depois renascer com uma força e uma amplitude que não tinha antes: o Erotismo vivido como uma experiência-limite que permite ao ser humano tocar as raízes da Vida; o Erotismo identificado com as forças terrestres que contém em si o Deus a ser redescoberto. Por outro lado,  a escritora, também se aproxima dos leitores através de uma linguagem mais fácil e bem-humorada, mas sem abrir mão do seu jeito de ver o mundo.

“Da Morte: Odes Mínimas” (1979).
Como cada poema é, dentro de sua contextualidade, ligado um ao outro, foi preciso selecionar somente um que resumisse o tema abordado, neste caso,  a Morte. 



Hilda Hilst mantém um incisivo e desafiante diálogo com a Morte, enfrentando cara a cara, como a grande Realidade que permanece tão misteriosa para os homens, como o era na origem dos tempos:
Te batizar de novo.
Te nomear num traçado de teias
E ao invés de  Morte
Te chamar
Insana
Fulva
Feixe de flautas
Calha
Candeia
Palma, por que não?

Diante de seu mistério, o que impede de vê-la de outras formas? Anulando toda a possível distância entre si mesma e a Morte, a poeta torna extremamente familiar a temerosa figura, mostrando-a ao mesmo tempo essencialmente participante da vida.

Te sei.     Em  vida
Provei   teu  gosto.
Perdas,  partidas
Memória,  pó

Com a boca viva provei
Teu gosto, teu sumo grosso
Em vida, morte, te sei.
..........................................

Juntas.    Tu  e  eu
Duas   adagas
Cortando  o mesmo céu.
Dois  cascos
Sofrendo as águas.

E as mesmas perguntas.


Empenhada há anos em experiências paranormais: gravações que captam vozes (supostamente de mortos), Hilda Hilst transmite à sua poesia dois desejos distintos: o primeiro, um Amor e Ódio da Morte (a ponto de querer se livrar dela), enquanto que o segundo conota uma vontade da presença da mesma que, sem dúvida, resulta de uma “certeza” que mais e mais se divulga em nossos tempos: a de que o homem está preste a re-descobrir sua alma e com ela, descobrir que a Morte é apenas uma mudança de estado, uma nova forma de vida, ainda desconhecida. Em entrevista concedida a Leo Gilson Ribeiro, Hilda diz:


“... eu acho que a morte é a única situação transcendente do homem, a problemática mais importante do homem (...) há vinte anos leio, medito, penso sobre o Homem, a Morte, o Ódio, etc. Daí eu achei, não sei, acho que minha criação literária e minhas fitas coincidem num ponto: na urgência de comunicar ao outro: ‘Você é imortal, não receie a morte, em sua imortalidade cada um de nós preservará a sua individualidade, não é aquela dissolução do eu no Nirvana, como prega o Budismo.’ De modo que quero chamar a atenção, por meio da literatura e das minhas experiências psíquicas para o inadiável: a premência de reproporem as tarefas prioritárias do homem”.
(in O Estado de São Paulo, 18/04/1977).

Não é o caso aqui de se discutir essa posição de Hilda Hilst. Mas parece fundamental que se relacione com sua poesia, pois pode esclarecer melhor sua linguagem metafórica. Inclusive, explicar a intimidade que nela existe entre o eu-poético e a Morte; e que longe de significar ironia ou leviandade, resulta de um convívio intenso. Note-se que a poeta se permite, inclusive brincar com a Morte; mostrando-lhe que, ao vir buscá-la, sairá lograda, pois será quase nada o que levará.

Perderás de mim
Todas as horas

Porque  só me tomarás
A uma determinada hora.

E talvez venhas
Num instante de vazio
E insipidez.
Imagina-te o que perderás
Eu que vivi no vermelho
Porque poeta e caminhei
A chama dos caminhos
.......................................
Morte, imagina-te.

Em outros momentos, mostra-se a inversão do natural: o vivo perseguindo a Morte.

Tendo prender teu corpo
Tua montanha, teu reverso.
Como se a boca buscasse
Seus avessos
Assim te busco
Torsão de todas as funduras.

Persecutória te sigo
Amarras, músculo.
...........................................

e mais adiante,

Desde que nasci, comigo:
Tempo-Morte.
Procurar-te
É estar montado sobre um leopardo
E tentar caçá-lo.

Minha tua garra.
Teu matiz de dentro.

Para além de sua beleza e magia poética, o significado mais vivo que se pode sentir nestas “odes mínimas” que falam da Morte, é a intuição de estarmos próximos do tempo em que nós, humanos, recuperaremos o sentido da sacralidade, a noção do sagrado que perdemos há muito... a perda “mais funesta, a mais terrível que se possa sofrer”, como disse a própria Hilda, na entrevista mencionada. E com essa recuperação, uma nova era se abrirá, mais luminosa.
No poema específico percebe-se a humanização da Morte por parte do eu-lírico.
 Quer dizer: este eu inicia-se com interrogações para com a Morte, a fim de descobrir qual sua origem, e isso porque o homem necessita de uma história.

Onde nasceste, morte?
Que cores, ocaso e monte?
E os pulsos que te arrancaram
Do mais escuro.     De carne?
Te alimentavas

 Igualando a Morte com pessoas comuns, o poema levanta questionamentos relacionados à gênese, à infância e a velhice da mesma. O eu-lírico também atribui à Morte relações com outras pessoas, sentimentos e principalmente a efemeridade junto à vida, inferindo, desta forma, que esta também morrerá. Enfim, quando criança será que a Morte “Não tocavas em tudo” (?)

E velhíssima agora
Conhecendo todos os tatos
Agonia, terror e pasmo

Tendo a Morte agora levado uma vida, conhecendo a magia da infância, crescendo “E o instante se fazia/ Insipidez e nada?”, em plena velhice agora, “Saciada”, por que não se vá? Talvez, seja a hora da própria Morte morrer, pois o Poeta nunca morre.

Por que não partes.

Assim, este poema (com versos livres), além do tema: Morte, trata como assunto a questão da condição humana, pois o homem tem um ciclo a obedecer em vida – nascimento, vida e morte – a Morte acompanhando o homem é testemunha disso. Contudo, certas metáforas presentes no poema como “E o instante se fazia/ Insipidez e nada?”, conota a angústia presente na vida, aquele momento onde nada parece não ter graça, nem sabor. A metáfora presente em “Saciada” infere uma Morte cumpridora de todos seus deveres (ou seja, levar as pessoas embora) cuja sua tarefa agora é ir embora e deixar o eu-lírico em paz. Ela já fez o que tinha que ter feito, já está saciada, agora, por que não se vá? Ir embora e deixar o eu-lírico em paz.

BIBLIOGRAFIA


HILST, Hilda. Poesia: 1959-1979 / Hilda Hilst. – São Paulo: Quíron; [Brasília]: INL, 1980.

CHEVALIER, Jean. “Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números” / Jean Chevalier, Alain Gherbrant [e a colaboração de André Barbault... [et al.]; coordenação Carlos Sussekind; tradução, Vera da Costa e Silva... [et al.] – 2. Ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 1989].




Um comentário:

  1. Maravilhoso ensaio sobre essa que é um dos pilares da poesia da segunda metade do século XX. Hilda possuía uma poesia singular, que a colocava lado a lado com os melhores poetas de sua geração.

    Foi bom rever um aparte sobre sua obra por aqui.

    Estou te seguindo!!!

    Forte abraço!

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