quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

ENSAIO LITERÁRIO - “Rei Lear” de William Shakespeare

KING LEAR


Peça teatral escrita, provavelmente, em 1605, numa época importante para Shakespeare, pois estando ele voltado ao Homem (interior) enquanto ser dotado de virtudes e defeitos levou à tona a complexidade da “tragédia maior”, tendo como base um fundo folclórico que, bem antes de se constituir nessa impressionante tragédia, se desenvolveu também na literatura de outros povos.
Levando em conta o aspecto folclórico desta obra, pode se então entender que as premissas de “Rei Lear” são irreais, pois é somente no contexto da fábula que um monarca faz doação, em vida, de todos os seus domínios e bens, abdicando, em seguida, de sua autoridade e um recanto para si mesmo. Em função disso, a estrutura dramática da peça acaba apresentando algumas características informes devido às ramificações de conflitos de cada cena. Tais características comprovam que dentre todas as peças de Shakespeare, talvez essa seja a mais difícil de ser representada.
Em cada ato o sofrimento é retratado como uma espécie de “marca maior”, narrando a angústia de Lear por culpa das filhas junto a outra história de crueldade e violência: a história do Conde Gloster que, atraiçoado e abandonado pelo filho predileto comete o mesmo erro do velho Lear, ou seja, dar ouvido à falsidade. Esta questão pode ser entendida no momento em que Lear reparte o reino pelas filhas mais velhas – Gonerila e Regania – em troca de suas falsas declarações de consideração e apreço, enquanto que Cordélia, a mais sincera, é expulsa devido à sua franqueza. Do mesmo modo, Gloster deixa-se levar pelo pérfido Edmundo e prefere-o ao filho legítimo, o honesto e leal Edgar.
Percebe-se, que essas “amarrações” de conflitos denotam a construção do trágico, revelando assim que, mesmo sendo, no consenso geral, a mais estupenda criação de Shakespeare, igualada às grandes criações do espírito humano, “Rei Lear” - em algumas cenas - se configura tecnicamente defeituosa, do ponto de vista dramatúrgico. Por outro lado, esta característica revela uma extrema liberdade e um incrível pessimismo de William Shakespeare em relação à natureza do animal intelectual, equivocadamente chamado Homem.
Se levarmos em conta a complexidade de cada personagem, podemos então afirmar que estas surgem, sob um aspecto quase alegórico, no intuito a construir o simbólico humano. Assim, convém ressaltar que o infortúnio das protagonistas e o conflito das demais transportam em si o grande problema da bondade na terra.
Tendo em vista a riqueza de cada personagem é necessário então se ater em duas considerações: a primeira é que a figura de Lear e Gloster, no momento de sua desventura, evidencia o aspecto do trágico na obra teatral, pois no exato momento em que ambos encontram junto de si os filhos bons e reconhecem de súbito a injustiça cometida, conota-se o “despertar” em relação àquilo que alimentou seu ego, no intuito a promover sua ruína, ou seja, a falsidade de suas filhas mais velhas.
A segunda premissa é mais pertinente: sendo Cordélia, logo no início da peça, apresentada como uma figura feminina de extraordinária pureza entende-se que a intenção do autor é retratá-la como “a mais doce das heroínas”. E isso se deve ao fato desta ser vítima de uma cega e obstinada injustiça, por parte de seu arrogante progenitor.
A figura desta heroína se assemelha a Antígona, a bondosa consoladora de Édipo. No entanto, ela não conhece outra medida que não seja a do amor. Isso fica bem evidente quando todos abandonam Lear e concorrem de forma fatal na loucura do velho. A natureza, simbolizada pela tempestade, parece desencadear contra ele toda sua fúria, mas é no meio deste trágico “círculo” que entra em cena a própria filha repudiada disposta a ampará-lo.
Percebe-se que, na peça de um modo geral, o valor de Cordélia exalta em seu pai as características cruéis de um tirano, ou seja, a arrogância, a obstinação e os requintes de crueldade tornam o próprio Rei Lear numa personagem antipática. Pode-se entender que, a partir disso, a dureza das filhas mais velhas para com o pai, acaba sendo desculpável, pois este, em função de sua prepotência, faz-se merecedor.
Cordélia é também retratada como aquela de ”espírito celestial”, a qual deu total apoio maternal ao pai, cuja debilidade e loucura o arrastou à segunda infância. Esta atitude faz com que Lear descubra que mesmo perdendo tudo, ainda tem junto de si o afeto de Cordélia, a qual, tendo casado com o rei da França, chega com um exército para o ajudar. Todavia, os bons perdem, porque o exército é vencido e, antes de Edmundo pagar finalmente as suas culpas, morto pelo irmão em combate singular, a doce Cordélia é enforcada, o que constitui o último golpe na razão do Rei, que morre com o cadáver dela nos braços. As duas filhas desnaturadas morrem também: uma envenena a outra e depois se suicida, ambas as vítimas de uma louca paixão por Edmundo. Pelo contrário, sobrevive Edgar, a quem são restituídos seus direitos, bem como o cego Gloster. Contudo, sobe ao trono o duque de Albânia, aquele que fora repudiado pelo velho Lear.
Shakespeare, no entanto, simboliza na morte de Cordélia a amargura da perda de seu filho Hamnet. Por outro lado, a pureza espiritual da bondosa heroína exalta o carinho do dramaturgo em relação às suas duas filhas, sobretudo Susanna, a primeira e preferida, fruto de um amor adolescente;
Por fim, é necessário enfatizar que o sentimento de patriotismo enraizado no coração de todas as classes sociais do séc. XVI inspirou e muito o dramaturgo a relatar, por meio do teatro, os fatos mais importantes da Inglaterra. Todavia, a respectiva peça “Rei Lear” é considerada o resultado da maturidade de Shakespeare, pois além desta surgiram também as suas outras grandes tragédias, bem como os seus amargos dramas de assunto romano, por exemplo, “Macbeth” (1605-1606), uma obra prima que representa também uma insaciável sede de poder engendrada por crimes e remorsos... Mas isso já é outra história...   



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